quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Bandeirinha de Futebol

O caso aconteceu nos primeiros anos do extinto Torneio Intermunicipal e está registrado em uma das histórias que o Desembargador Valério Chaves relata em seu livro CASOS DE JUSTIÇA (E Outras Histórias Que a Vida Conta), que me foi gentilmente presenteado pelo autor, enriquecendo o Acervo Severino Filho.
 
Antes da reprodução da crônica, é oportuno salientar que Valério Neto Chaves Pinto trabalhou por muitos no radio-jornalismo da capital piauiense, ocasião em que teve o privilégio de ser o primeiro locutor oficial do serviço de som do Estádio Albertão, missão que desempenhou desde o dia da inauguração do estádio, em 26 de agosto de 1973. Mas vamos ao dia em que Valério trocou a notícia pelo difícil mister de bandeirinha de futebol.
 
Na imensidão dos mundos por onde andei tive pela frente muitas experiências no palco da vida - umas que passam ao largo, outras assumem alguma magnitude, porém, todas com seus matizes e colorações de acordo com as circunstâncias como aconteceram.
 
Depois que aportei no mundo das gentes no sertão do Piauí, em pleno desenrolar da Segunda Guerra Mundial (1941), exerci, para sobreviver, diversas profissões, indo desde aprendiz de pedreiro até a judicatura, e que, na escala de valores de cada qual, ainda hoje mexem com os meus sentimentos.
 
Uma dessas experiências, talvez a mais trágica e cômica, foi a de atuar como "bandeirinha" de um jogo de futebol, lá pelos idos da década dos anos 60, no final do Campeonato Intermunicipal de Futebol - promovido pela Associação Profissional dos Cronistas Desportivos do Estado do Piauí - APCDEP.
 
Conto, agora, pela segurança de ter ficado guardada na memória, há 49 anos.
 
Na época, as atenções dos torcedores do interior do Estado do Piauí estavam voltadas para o Torneio Intermunicipal de Futebol, com a participação das seleções da maioria dos municípios piauienses.
 
Na fase eliminatória, as seleções de Picos e de Floriano foram classificadas para a partida final, a ser realizada na cidade de Picos, na condição de mandante.
 
Entre os jogadores e dirigentes da seleção de Floriano, havia um sentimento de revanche, uma vez que tinham perdido a primeira partida no domingo anterior, por 2 a 1. Pelo lado do adversário, o clima era de vitória, levando-se em conta a melhor categoria de seus jogadores e o apoio que, certamente, iria receber da torcida local.
 
No dia da decisão, a cidade de Picos amanheceu em alvoroço. Foguetes pipocavam para todos os cantos da cidade, em meio ao grande entusiasmo da torcida. Afinal, era a primeira vez que o selecionado picoense ia participar de uma finalíssima de um Intermunicipal.
 
As apostas e os palpites sobre o resultado da partida eram feitos nos locais de maior movimentação da cidade, pelos torcedores mais entusiasmados.
 
A entidade promotora do torneio (APCDEP) estava representada na cidade pelo seu presidente, o jornalista Pedro Mendes Ribeiro, que havia se deslocado de Teresina na manhã daquele domingo, em companhia de alguns locutores de rádio, encarregados da transmissão da partida para todo o Estado.

Da comitiva, além do pessoal da área esportiva, faziam parte vários representantes de emissoras de rádio da capital. Eu, que apesar de não ser locutor esportivo, havia sido designado pela direção da Rádio Clube para fazer a cobertura jornalística do grande acontecimento. Viajei quase como um intruso, levando material para anotações e um gravador a tiracolo.
 
O início da partida estava prevista para 16 horas, mas, por volta das 15 horas, já estávamos a postos nas dependências do Estádio Municipal Helvídio Nunes de Barros, cuja lotação estava esgotada desde as primeiras horas da tarde daquele domingo. 
 
Valério Chaves, primeiro locutor do serviço de som do Albertão, hoje desembargador (Foto - reprodução).
Na disputa de lugares mais próximos, os torcedores se espremiam nas poucas arquibancadas existentes armadas ao redor do campo de jogo, separadas do gramado apenas por uma cerca de arame farpado.
 
A poucos minutos para o início da partida, eis que surge um problema inesperado.
 
O trio da arbitragem estava incompleto. Faltava um dos bandeirinhas sorteados para trabalhar na partida decisiva. Naquela época o termo era este mesmo: "bandeirinha". Hoje é assistente.
 
O presidente da APCDEP, Pedro Ribeiro, não perdeu tempo. Olhou prá mim e disse:
 
- Valério, por acaso, tu já apitastes jogo de futebol alguma vez na tua vida?
 
Levei um susto, mas respondi sem pestanejar dizendo que entendia um pouquinho de regra de futebol.
 
- Bem, se tu entendes um pouquinho das regras de futebol, já é alguma coisa - serve para substituir o bandeirinha que faltou hoje aqui neste jogo. Topas? - interpelou-me em tom de intimação.
 
Com a voz um tanto forçada e movida por um gesto impensado, respondi afirmativamente, mas só eu sabia o tamanho do medo que me assolava naquele momento.
 
Rapidamente, foi providenciado toda a indumentária: uma bandeira branca, uma camiseta e um calção preto. Vesti tudo no vestiário improvisado ao lado do campo.
 
Finalmente, as seleções entraram em campo, saudadas com foguetes e salvas de palmas, pelas respectivas torcida.
 
Antes da bola rolar, no centro do gramado, perfilado na pista lateral do campo, sem me ocorrer que poderia estar em perigo, olhei para o juiz central e com o polegar direito fiz sinal indicando que tudo estava em ordem para o pontapé inicial da partida.
 
Depois do som agudo do apito, começou a grande decisão.
 
Logo aos 5 minutos, a seleção de Picos atacou pela direita, levando de roldão toda a defesa adversária.
 
No momento em que o centroavante dominou a bola e se preparava para chutar contra o gol adversário, percebi que o jogador estava adiantado e, sem pestanejar, levantei a bandeira marcando impedimento invalidando a jogada.
 
Nesse instante, mal tinha abaixado o bastão da bandeira, senti um violento impacto contra o meu calcanhar direito. De início, pensei que tinha sido alvejado com um tiro de arma de fogo, em face do estouro dos foguetes que pipocavam para todos os lados. Nada disso. Foi algum torcedor, talvez inconformado com a marcação do impedimento, me acertou intencionalmente com uma violenta pedrada.
 
Caí no chão quase desmaiando com as mãos apertadas uma na outra entre os joelhos, pedindo socorro ao juiz da partida, que, de imediato, parou o jogo e autorizou a entrada dos médicos socorristas de plantão. A dor era tão grande que as palavras não conseguiam sair. Mais tarde, estava no hospital local, donde só saí no dia seguinte, sem querer saber do resultado do jogo.
 
No mesmo dia retornei a Teresina, com o pé enfaixado, assistindo meus companheiros de viagem rirem um para o outro, zombeteiramente.
 
Fiquei alguns dias de cama, convencido de que, no futebol, não valia a pena ser juiz ou "bandeirinha" de ocasião, sem jamais imaginar que, no futuro, viria a ser um juiz de verdade - não de futebol, mas de Direito.

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